A unidade na diversidade

“Você estaria disposto a olhar para você hoje e questionar o quanto você depende para viver do equilíbrio de um sistema que necessita de uma gama incontável de diferentes espécies para manter a coesão do planeta que é uno para você e para mim?”

 

A unidade na diversidade

por Conceição Giori, diretora executiva da Fazenda Giori de café robusta biodinâmico

 

Recente matéria publicada na BBC News Brasil, assinada pela jornalista Alejandra Martins, cujo tema foi o livro do também jornalista Don Saladino, intitulado “Eating to Extinction” (Comendo até a extinção), expôs que a perda da diversidade alimentar com a extinção ou quase extinção de espécies não “padronizadas” de alimentos não leva apenas a um empobrecimento da dieta, mas a um empobrecimento da identidade.

 

Intitulada “Fim das bananas? Por que alguns vegetais correm risco de extinção segundo o livro”, a matéria traz trechos da entrevista com Don Salatino concedida a BBC News Mundo por ocasião do Hay Festival de Cartagena 2023.

 

Nos trechos revelados na matéria, Saladino afirma que uma enorme gama de alimentos ameaçados (e infelizmente desconhecidos para a grande maioria de nós) de extinção significam muito mais do que apenas uma fonte de sobrevivência, mas um registro maravilhoso de nossa própria história como humanidade. Nas palavras de Saladino, “a comida é uma lente incrível para entender o mundo”.

 

E não se pode reduzir o mundo a um punhado de grãos, nem a uma dúzia de plantas, nem meia dúzia de raízes e milhares de receitas do que fazer com eles, a menos que pretendêssemos apagar a sabedoria de toda uma ancestralidade que nos é comum e que deixou seus registros de evolução em formas tão genuínas e diversificadas de alimentação e cujo cultivo ensina sobre a jornada de nossa identidade em cada parte do globo onde nossos ancestrais tenham vivido e se desenvolvido.

 

Segundo Saladino, “o mundo tornou-se dependente de uma quantidade relativamente pequena de alimentos. Existem basicamente nove culturas principais consumidas globalmente. E cerca de 50% das calorias que consumimos são fornecidas por apenas três: trigo, arroz e milho.”

 

Essa dependência tem um alto custo, a principal e mais nefasta delas é a destruição da diversidade que foi construída em milênios de atividade agrícola em diversas regiões de nosso planeta, destruição que veio a custo de um modo altamente intensivo de monocultivo, em que a eleição do que seria “melhor”,  “mais aceito”, “mais importante”, “mais elegível”, “mais saboroso”, “mais nutritivo” se deu por conta de interesses de mercado que nem sempre estão (e no mais das vezes não estão) atrelados a conceitos de bem-estar e integração genuína. Se a diversidade é destruída, o equilíbrio sistêmico também o é. E sem esse equilíbrio, nosso Planeta perecerá.

 

Saladino expressamente correlaciona a homogeneidade do sistema alimentar às importantes mudanças climáticas que tem nos impactado e lança uma evidente verdade: “precisamos ser mais humildes e reconhecer que a ciência e a tecnologia funcionam em um nível, mas também criaram muitos problemas. E um primeiro argumento para salvar a diversidade é que talvez, no futuro, muitas soluções podem ser encontradas na diversidade genética de alimentos cultivados há milhares de anos.”

 

É fascinante a descrição de espécies, como o milho Oloton, de Oaxaca, no México, produzidas em áreas pouco favoráveis à agricultura dentro do conceito convencional e usual do que é agricultura e terra agricultável para nós.

 

Se considerarmos que somos uma individualidade coletiva, ou seja, que nosso corpo abriga um número incontável de bactérias em relação à diversidade das quais o bom funcionamento do nosso corpo depende, ficará mais factível de perceber porque alimentar-se sempre dos mesmos alimentos, cultivados em regime de monocultura às custas da extinção de outras espécies é tão nefasto para nós.

 

Saladino não apenas aponta os equívocos de nosso sistema produtivo, mas indica o que nós podemos fazer para ajudar a conduzir esse sistema para uma nova roupagem, mais integrativa e coerente com nossa própria necessidade de diversidade para que a vida se mantenha, inclusive dentro de nós:  Quaisquer que sejam os ingredientes que você esteja usando, gostaria de convidá-lo a parar por um momento e pensar que há uma história por trás desse ingrediente, uma história de milhares e milhares de anos de agricultores que adaptaram o cultivo para que ele chegasse ao seu prato. Conhecer essa história é importante.

 

O conselho de Saladino passa para a permissão de abertura para o novo, livre de preconceitos e amarras do que se convencionou pensar ser o melhor, o mais saboroso, etc, mas que, na prática, pode ser o que menos fale de nós como história de vida e de desenvolvimento enquanto cultivo como cultura e não como mera exploração econômica dissociada de compromisso com o que se faz, por quem se faz e por que se faz.

 

Conhecer quem, o quê, como e o porquê é o primeiro caminho pra iniciar nutrição de verdade. Nos nutrimos não apenas das vitaminas, minerais, óleos, antioxidantes ou toda gama de nutracêuticos presentes num alimento, mas nos nutrimos sobretudo do poder nutritivo que a história daquele alimento contem.

 

O convite que Saladino lança tem o poder de nos tirar de nossa zona de conforto de simplesmente aceitarmos a verdade que vem de fora para passarmos a buscar a verdade que nasce por dentro, dos nossos próprios sentidos e percepções. E a partir daí reconhecermos que somos responsáveis também pelo sistema de cultivo vigente e pela nossa ignorância quanto a maravilhosa diversidade que existiu para nós e que nós não aprendemos a ver e a enxergar. Tanto a ignoramos em nosso redor, em nossa comunidade, em nosso estado, em nosso país, continente e em nosso planeta quanto a ignoramos em nós mesmos.

 

A diversidade é tão crucial quanto o conhecimento íntimo da natureza também o é. Não é possível compreender a diversidade e seu sentido unificador se não se puder entender intimamente a natureza e sua sabedoria de cooperação mútua. A diversidade não está ou esteve presente por acaso, ela somente aconteceu porque sem ela não existiria restauração da vida e seu fomento em incontáveis formas. O próprio Homem, enquanto espécie humana, “não representa originalmente mais do que uma das incontáveis nervuras que forma o leque, ao mesmo tempo anatômico e psíquico, da Vida” (Teilhard de Chardin ).

 

Se pararmos para pensar que quando escolhemos um alimento escolhemos uma versão da história que queremos contar ou perpetuar, bastará que nos perguntemos como queremos ver o mundo quando acordarmos amanhã para que tenhamos a melhor resposta. A queima desenfreada de combustíveis fósseis, o desmatamento, a subjugação de espécies por outras que foram “elegidas” como as melhores pelo marketing alimentar que se construiu, a aridez do solo de sonhos mutilados de milhares de agricultores descendentes de práticas ancestrais que foram obrigados a abandonar suas histórias de vida e de preservação de verdadeiros tesouros alimentares não estão desatrelados de nossas escolhas sobre com o que nos alimentamos.

 

Você estaria disposto a aceitar descobrir seus próprios gostos e preferências?

Estaria disposto a conhecer as histórias por trás de cada alimento, inclusive e em especial daqueles que lhe são desconhecidos?

Você estaria disposto a olhar para você hoje e questionar o quanto você depende para viver do equilíbrio de um sistema que necessita de uma gama incontável de diferentes espécies para manter a coesão do planeta que é uno para você e para mim?

 

A diversidade é tão essencial que é fonte de pacificação inclusive no campo emocional e espiritual. Assim como precisamos de diferentes vertentes de pensamento, diferentes áreas do saber, diferentes religiões para conectar com Deus, servindo a diferentes aspirantes ou buscadores, assim também precisamos de diferentes plantas, animais, minerais e mesmo diferentes águas e ventos para nos conectarmos com a unidade de tudo isso dentro de nós, já que numa medida justa, somos tão nosso Planeta quanto nosso Planeta nos têm nele.

 

A segmentação excludente é uma forma simplista de pensar a natureza. Quando afirmamos que uma cenoura é melhor que uma batata estamos ignorando completamente a limitação que nos impomos a nós mesmos de pretendermos conhecer o objeto pelo observador. Assim como um não é o outro, ambos só podem ser compreendidos se forem percebidos como individualidades que se tocam e na parte que se tocam tornam-se um na diversidade de cada qual e então, o observador pode descobrir que o objeto é bom, mesmo se milhares de outros objetos forem colocados para observação conjunta, porque não se irá criar comparações, nem confusões entre um e outro, mas experiências em que cada qual e todas elas poderão ser boas.

 

Todos as espécies alimentares em extinção e mesmo aquelas que embora não extintas, são ignoradas ou desprezadas em seu valor na balança da vida, representam no fim facetas de nós mesmos, de nosso caminho de evolução em milhares e milhares de anos em nosso Planeta e na relação com a terra, que condenamos ao ostracismo e à morte por esquecimento de quem somos e nosso papel no mundo.

 

Nosso potencial de vida está intrinsicamente ligado às cores, formas, aromas e sabores que aceitamos convidar para uma jornada de conhecimento de todas as diversas partes de nós que podem habitar agora num pé de milho no México, numa árvore de café no Brasil ou numa árvore de café ainda não catalogada na África, ou que podem habitar em todas as plantas e animais que agora respiram conosco o sopro da vida.

 

Capa do livro de Dan Saladino, Eating to Extinction